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segunda-feira, 18 de julho de 2016

Como reconhecer uma boa cachaça?


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Para começo de conversa, a que é boa mesmo, diferente da maioria encontrada no mercado, tem aroma agradável, não “desce queimando”, não dá “bafo” e também não dá ressaca.

Embora seja uma bebida destilada, como o uísque, e não fermentada, como o vinho, uma cachaça realmente boa é mais semelhante ao vinho do que ao uísque. Lamentavelmente poucas pessoas sabem disso. São raros os alambiques produtores da mais legítima e antiga bebida brasileira na qualidade especial que toda cachaça poderia ter (a propósito de antigüidade, há registro histórico de que o primeiro engenho para moagem de cana-de-açúcar no Brasil foi construído em 1534, por Martim Afonso de Sousa, donatário da Capitania de São Vicente).

No riquíssimo e pouco conhecido universo da cachaça, o consumidor fica imerso na tempestade de informações de interesse comercial, de opiniões inconsistentes quase sempre contaminadas pelo exibicionismo de quem produz ou de quem consome, como se tudo fosse mistério e exclusividade na produção e na degustação de uma boa cachaça.

Antes de ter meu primeiro alambique, pesquisei muito sobre produção e consumo de cachaça no Brasil, visitando muitos produtores, fazendo cursos, lendo tudo que encontrei, procurando as poucas universidades que se interessavam pelo assunto, espichando muitas conversas pelo interior de Minas Gerais.  Nessas andanças, fiquei surpreso ao constatar o promissor futuro da cachaça, ainda que envolta por amadorismo, preconceito, marginalidade.  

Assim como ocorre na vida e em gestão de negócios, quanto mais baixo o estágio de evolução, mais amplo o espaço para a expansão. Se o leitor pensa não saber produzir e não saber degustar uma boa cachaça, esteja à vontade, isso acontece até mesmo com apreciadores brasileiros.

Se você acha que é um desinformado em cachaça, saiba que o problema não é seu: a desinformação ronda a cachaça, quase sempre disfarçada em indefinições primárias, a começar pelo nome do produto: cachaça, pinga, caninha ou aguardente? Sem falar nos sinônimos populares mais usados: birita, branquinha, cobertor de pobre, dengosa, uca, tira-teimas, mé, água que passarinho não bebe, canjebrina.

Como o que nos interessa aqui é falar sobre algumas orientações na produção e na avaliação de qualidade, deixamos ao arbítrio do leitor. Para situar o leigo, explicitamos que nos referimos à cachaça artesanal produzida em pequena escala, porque quantidade e qualidade não combinam bem neste processo, do mesmo jeito que há substancial diferença entre fazer uma boa comida em fogão à lenha para dez pessoas ou fazer para cem pessoas.
Resumidamente, o processo tradicional é assim:

1. Cultivo da cana-de-açúcar – qualquer uma das centenas de variedades de cana serve para ser alambicada. A diferença entre uma ou outra se reflete mais na produtividade, na quantidade de caldo ou no teor de sacarose, do que na qualidade da cachaça. Em tempo, nada de venenos, de fogo, e de outras práticas ecologicamente condenáveis.

2. Moagem – a cana é triturada, geralmente em engenhos convencionais de moendas, para dela se extrair o caldo mais comumente chamado de garapa. Aqui, na moagem, dois fatores influem decisivamente no grau de acidez da cachaça: a limpeza e a higienização do engenho, e o tempo que a cana ficar cortada (tanto melhor quanto menor for o prazo entre o corte, transporte e a moagem).

3. Fermentação – do engenho, a garapa vai para tanques ou cubas, aperfeiçoando o produto final, mais coada e sem bagacilhos ou qualquer outro resíduo sólido. Nesses recipientes diariamente se coloca garapa nova e limpa, com teor de sacarose em torno de 15 graus brix (grau que indica o teor de sacarose, medido por um aparelho chamado sacarímetro) e pH de 4,8 a 6,0. No processo artesanal de produção de cachaça, utilizando fermentação “caipira”, cerca de 20% do recipiente contém fubá de milho torrado e mais um pequeno percentual de farelo de soja e farejo de arroz. Nesses nutrientes
orgânicos encharcados de garapa proliferam microorganismos, dentre os quais se sobressaem as leveduras, células eucariotas predominantemente “saccharomyces” e “schizosaccharomyces” – as mais eficientes na transformação de sacarose em etanol. A conversão do açúcar em álcool proporciona a transformação da garapa em mosto, a matéria pronta para a fase de destilação. Em boas condições, o tempo de fermentação varia de 12 a 24 horas, incluindo o período de decantação.

A cachaça é boa ou não (no sabor, no aroma, na leveza, na maciez, no “dia seguinte”) em função de cada detalhe do processo de produção. Mas o conjunto de detalhes da fase de fermentação é essencial e difícil de gerenciar. Basta lembrar que, na prática, o que chamamos de fermentação é a criação de seres vivos, as leveduras, não visíveis ao olho nu, super sensíveis e exigentes quanto a horários de alimentação (renovação da garapa doce por natureza), tempo de descanso (decantação), condições ambientais (temperatura local e higiene do recipiente) e condições para reprodução e renovação das células.  Se você tiver a oportunidade de visitar um alambique em todas as instalações, priorize a parte vital, onde se fermenta, e procure observar os cinco indicadores de qualidade do processo com influência direta na qualidade do produto final:

3.1 ao chegar, respire fundo e sinta se o aroma é de frutas maduras, suave, agradável, ou se o cheiro é um misto de álcool e de algo azedo, como se alguma coisa estivesse ali se decompondo e exalando  acidez.

3.2 veja se existem moscas e mosquitos no ambiente de fermentação. A presença de “moscas de vinagre” (drosófilas) indica infecção por bactérias acéticas que fazem aumentar a acidez do mosto e do produto final.

3.3 outro indicativo de qualidade da fermentação (ou melhor, da criação de leveduras) é o aspecto da espuma que fica na superfície do mosto parecendo fervura. É a ação das leveduras sobre os açúcares, provocando a formação de gás carbônico na proporção de uma molécula do gás para cada molécula do etanol. Também, a olho nu, preste atenção: mau sinal é a ocorrência de bolhas (quanto maiores, pior) e bom sinal é uma movimentação de “fervura” semelhante ao que acontece na culinária, principalmente em doces.

3.4    pergunte sobre a rotina de horários de renovação da garapa, de tempo de decantação do mosto de edição do brix (teor de sacarose) da garapa ao entrar no tanque. Quanto mais constância e disciplina melhor.

3.5 uma pergunta-chave para uma informação macro: de quanto em quanto tempo o “fermento” tem sido renovado, trocado, refeito?  Bom indicador de qualidade é se ele não “arreia”, não “adoece” e não “morre” pelo menos durante toda safra convencional, em torno de seis meses. Para quem alambica o ano todo, ele deve estar bem o ano todo e todo o tempo, apenas sendo oxigenado de vez em quando.

4. Destilação – de tanto se “alimentarem” do açúcar da garapa, as leveduras a transformam em mosto, fazendo cair o teor de sacarose de mais ou menos 15º graus brix para zero. Aí o mosto zerado de sacarose fica um pouco em repouso, para decantação e “descanso” das leveduras, e, em seguida, vai para os alambiques enormes “panelas” com capacidade para cem a mil litros de mosto.  A destilação da cachaça ocorre por aquecimento (fogo direto ou caldeira) do mosto que, ao ferver, entra em processo de evaporação. O vapor sobe no alambique e se transforma em líquido, condensando-se ao entrar em contato com o fundo do capelo cheio de água fria e corrente.  Nessa fase de destilação, é absolutamente essencial tirar os primeiros litros da cachaça (essa primeira parte é chamada de “cabeça”) que são inevitavelmente contaminados por elementos agressivos à saúde e ao bom gosto do consumidor. Depois desses elementos mais voláteis, a destilação entra na etapa de produção da melhor parte da cachaça, chamada de “coração”. Esse produto de melhor qualidade representa dez por cento do total do mosto. Depois do “coração” vem a “cauda”, ou “água fraca”, que é tão ou mais nociva à saúde e ao bemestar do consumidor do que a “cabeça”. É aqui que se caracteriza uma das impossibilidades de conciliar quantidade e qualidade na produção realmente artesanal e ética de uma ótima cachaça. A opção para se ter um bom produto é não misturar “coração” com “cabeça” e “cauda”.

5. Armazenagem e Envelhecimento – engarrafar cachaça nova e colocá-la sem “maturação” no mercado deveria ser caso de saúde pública. Colocar cachaça nova sem engarrafar deveria ser caso de polícia. A cachaça armazenada em barris, tonéis ou dornas de madeira “curtida” faz enorme diferença em sabor e em ocorrência de elementos voláteis. Nessas circunstâncias, há diferenças marcantes entre a bebida produzida no dia, a armazenada há um mês e a envelhecida há seis meses, principalmente se a madeira for boa em poros, idade e troca de oxigênio, sem interferir no sabor, como carvalho ou bálsamo.  Acondicionada em vidro, o envelhecimento é muito lento, levando anos para alcançar a maturação que na madeira se alcança em meses.  

Como conhecer uma boa cachaça? Resposta sem contra-indicação: experimentando e sendo exigente.

Não se impressione com rótulos, folders, histórias interessantes: experimente e não tome se ela descer esquentando e “arranhando como unha de gato”. Também não tome se sentir cheiro de álcool e não de cana. Se notar acidez (gosto ou cheiro de vinagre), lembre-se do respeito que você deve ter com seu sistema digestivo!

Não desvalorize seu olfato e seu paladar em função de condicionamentos e “folclores” sobre cachaça colorida ou cachaça branca, “rosário” ou não “rosário”: os desonestos falsificadores sabem como colorir ou como branquear. 

Acredite em sua capacidade de avaliar, analisar e ir comparando umas às outras, como quase tudo de bom que a gente faz na vida.  Lamento não poder convidar cada leitor a ir ao meu alambique para ver a produção e experimentar a cachaça da Fazenda Boi Parido. Os que se animarem serão bem-vindos.

Demóstenes Romano
Jornalista e produtor de cachaça. 
Fonte:

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